quarta-feira, 30 de novembro de 2016

MESMO VALOR

Fiquei perplexa com a quantidade de pessoas que revelaram para mim a sua crença de que ter outro filho funciona como uma solução mágica para a dor. Como dezenas de pessoas me falaram a mesma coisa, cheguei a me perguntar se isso não seria a coisa certa a se dizer e, na verdade, eu é que era a errada de não gostar de ouvir. Mas, passados alguns meses, comecei a ter contato com outras mães que passaram pela perda gestacional ou neonatal e descobri que todas eram unânimes em dizer que também não gostavam de tal atitude. Considero fundamental que a sociedade se conscientize de que os filhos, para seus pais, possuem o mesmo valor, independentemente do fato de ainda estarem dentro do ventre, de serem recém-nascidos ou de terem conseguido viver dez, vinte ou oitenta anos.

Por que a idade seria um fator determinante para que os pais confiram mais ou menos valor a um filho? Se ninguém diria a uma mãe, durante o velório de seu filho de trinta anos: “Não fique triste, você vai ter outro”, isso também não deveria ser dito a quem perdeu um bebê. Antes de perder meu bebê, talvez eu não percebesse essa realidade, mas hoje não tenho mais a menor dúvida de que não há diferença entre o amor por um filho de poucos ou muitos anos de vida. Negar reconhecimento a essa dor para quem passou menos tempo junto do filho é uma atitude que aumenta o sofrimento dos pais. Portanto, hoje me sinto em condições de afirmar, sem medo, que, se alguém tiver a intenção de consolar um pai ou uma mãe, nunca deverá falar que em breve a pessoa terá outro filho. Não importa a idade com que o filho morreu.

“Lamento muito”, ou “pode contar comigo para o que precisar”, são expressões maravilhosas. Sempre serão bem-vindas. Mas dizer que a pessoa vai ter outro filho é a pior coisa que pode ser feita, pois essa frase soa, para os pais, como um insulto à memória de quem partiu, na medida em que faz parecer que é possível realizar uma substituição, e isso definitivamente não acontece. Todos deveriam saber que quando uma mãe e um pai choram pela partida do filho, eles não estão chorando porque ficaram sem filho, mas porque ficaram sem aquele filho. Outro filho não vai resolver o seu problema, porque não será o mesmo.

Não estou querendo defender que então não existe solução para a dor dos pais de bebês e que devemos deixá-los chorando para sempre. Existe solução sim, da mesma forma que existe solução para a dor das pessoas que perdem filhos adultos, que perdem cônjuges, pais, irmãos, avós, ou qualquer outro ente querido. Só acho importante esclarecer que a solução para a dor dos pais de bebês que morreram não é a troca de um bebê por outro, da mesma forma que a solução para a dor de um filho não é a troca de sua mãe por outra.

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segunda-feira, 21 de novembro de 2016

NOSSA MÚSICA

Quando pensamos que a vida é eterna, a morte não é o fim. Ela é uma pausa. E pausas não põem término a nada, são simplesmente intervalos. Como a própria palavra indica, uma pausa apenas separa duas coisas iguais, de modo que, depois da pausa, sucede o retorno do estado anterior. E é assim que vejo a partida do meu filho. Nosso vínculo não se desfez. Ocorre, porém, que, como em qualquer vínculo, existem momentos de maior proximidade, e outros em que nos distanciamos da pessoa sem, no entanto, perder a vinculação com ela. Se fôssemos obrigados a ficar grudados, não seria vínculo, mas prisão. Vínculo pressupõe liberdade, elasticidade, adaptação.

Dessa forma, assim como os sons podem ser intercalados com as pausas, sem impedir que a música continue existindo, as proximidades podem ser intercaladas com os distanciamentos, sem impedir que o vínculo continue existindo. Aliás, para sermos exatamente fiéis ao conceito, precisamos inclusive ressaltar que as coisas funcionam de modo contrário. A pausa não é um elemento estranho, que pode ser tolerado dentro da música, sem que ela se desnaturalize. Na verdade, a pausa é um elemento essencial da música, sem o qual ela não poderia existir.

De acordo com a definição do dicionário, música é a arte de combinar harmonicamente uma sequência de sons de modo agradável ao ouvido. A música, como arte, cumpre o papel de nos encantar, deleitar a nossa alma. Fazendo uma analogia, podemos considerar que amor é a arte de combinar harmonicamente uma sequência de encontros de modo agradável ao coração. O amor, como a arte mais importante da vida, cumpre o papel de nos elevar, aperfeiçoar o nosso espírito.

Pensando nos vínculos existenciais como músicas e cada etapa de vida, em que as pessoas vinculadas se encontram, como notas, a morte cumpre a função de pausa, que não pode ficar de fora da construção dessa maravilhosa melodia do amor. Uma morte em idade avançada equivale a uma pausa curta, enquanto uma morte prematura seria o equivalente a uma pausa longa. E nós sabemos que nas músicas as pausas não possuem sempre a mesma duração. Algumas vezes, a pausa precisa ser maior ou menor que as outras, para se ajustar ao ritmo da melodia à qual pertence. Procuro pensar que a morte do Igor apenas colocou um intervalo dentro da música que representa a nossa união. O último silêncio que se interpôs entre nós não compromete a harmonização da sinfonia que estamos executando juntos, pois ele é apenas uma das muitas pausas que intercalam muitas outras notas que vieram antes e ainda virão depois. 

No dia em que esses tempos de proximidade e distância se transformarem em sons e pausas, e eu puder ouvir com meus sentidos espirituais a música formada pelos encontros e separações que se alternaram dentro do nosso vínculo existencial, perceberei que essa pausa que estamos vivendo agora se encaixa dentro da nossa melodia, sem modificar seu valor. Com a mesma certeza que tenho de que continuarei sempre escrevendo cartas para ele, sei que, quando nos encontrarmos novamente, novas notas soarão e a nossa música vai continuar tocando. No que depender de mim, essa linda canção nos acompanhará por toda a eternidade.

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sábado, 12 de novembro de 2016

ESTADO IRREVERSÍVEL

Querido filho, descobri que mãe é um estado irreversível. Depois que o gestei, nunca mais voltarei a ser quem eu era antes, mesmo que não estejamos fisicamente juntos. Entendi que a maternidade começa com o estímulo que o filho cria na mulher, ao requisitar que ela se provenha dos sentimentos necessários para recebê-lo e ampará-lo. Mas, quando esse processo interno é disparado, ganha autonomia e segue uma direção própria, que nem a ausência do filho pode mais interromper ou fazer regredir.

Independentemente de poder ou não colocar você no meu colo, ainda tenho um grande motivo para festejar: o fato de você ter despertado dentro do meu coração o amor mais puro que já senti e que continua me acompanhando após sua partida. Esse motivo sozinho é suficiente para preencher uma existência inteira.

Que honra poder criar uma vida e sentir o impulso de nos aperfeiçoarmos, para oferecer ao filho algo além de tudo o que já possuímos. Mãe gera, alimenta, protege, ensina, apoia, zela, defende, cuida... Enfim, ninguém poderia ganhar um tesouro maior do que a chance de exercer tarefas tão sublimes. Deus é realmente formidável! Que ideia genial essa que Ele teve de emprestar seus filhos para que, através da transitória experiência de sermos filhos uns dos outros (sem deixarmos de ser todos filhos Dele), possamos conhecer a Sua imensa felicidade! Sou grata a Deus por ter me dado essa inigualável oportunidade, e também a você, que foi o veículo por meio do qual pude aproveitar o divino presente que se encontra à disposição de todos aqueles que desejarem desempenhar a função de estagiário no cargo de Criador.

Os benefícios da maternidade são tão vastos, que eu gostaria de poder enviar um recado aos meus semelhantes, afirmando que não há nenhuma razão para ter medo. Os filhos jamais nos causarão danos. Eles podem, sim, nos trazer, muitas vezes, desassossego e cansaço devido aos intensos trabalhos mentais que precisaremos realizar para lhes dar educação, e também para aceitar a possibilidade de morrerem antes de nós. Um filho travesso obriga seus pais a desenvolverem a tolerância, um filho introvertido compele seus pais a cultivarem a discrição, um filho ingrato força seus pais a adquirirem confiança em seus próprios valores, um filho que morre antes de seus pais lhes impõe a necessidade de combater o egoísmo. De modo que todos os sofrimentos que porventura venhamos a suportar por causa de um filho nunca serão prejuízos, mas apenas episódios com o potencial de corrigir nossos defeitos e aprimorar nossas virtudes.

Você foi embora rápido e, por ter se despedido tão cedo, mostrou-me muitas coisas que eu precisava superar e aprender. Que generosidade a sua ter ficado aqui por um curto período, mas ter deixado para mim um bem permanente. Você me transformou numa pessoa mais forte.

Um beijo afetuoso da mamãe,

Flavia Camargo.

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quarta-feira, 2 de novembro de 2016

OUTROS ENCONTROS

A página do grupo Do Luto à Luta: Apoio à Perda Gestacional e Neonatal publicou mais uma carta que escrevi para o Igor.

"Querido filho,
O meu costume de pensar em você com ternura, recordando as maravilhosas semanas que passamos juntos, alimenta o desejo de que essa felicidade experimentada no passado possa vir a se repetir no futuro. É uma consequência inevitável imaginar que um amor tão forte como esse promoverá, entre nós, outros encontros. E quando lanço meus pensamentos para o dia longínquo em que iremos nos rever, questiono-me se serei capaz de notar que meu maior sonho está se realizando.
Sinto que nossos corações se buscam e, portanto, viver novas experiências ao seu lado parece algo natural. Porém, é provável que eu não perceba que desfrutar da sua companhia foi uma oportunidade esperada por tanto tempo. Então, existe a chance de que um acontecimento de imensa importância não seja estimado da forma como seria, se eu tivesse condições de entender a honra que significa ter uma pessoa querida ao meu alcance.
A atividade de refletir sobre essas questões relativas aos mistérios do amanhã me proporcionou um ótimo aprendizado. Se estar contigo mais uma vez é a melhor coisa que pode me ocorrer e, apesar disso, talvez eu não tenha consciência do valor desse presente quando ele chegar, então os relacionamentos que tenho hoje com as pessoas que estão perto de mim também podem ser dádivas pelas quais estou aguardando há séculos.
Dessa forma, sua passagem pela minha vida concedeu-me o dom de transformar o que era trivial em um verdadeiro privilégio. Conquistei o poder de ampliar a alegria que cada um dos meus vínculos afetivos me oferece. E também passei a tomar cuidado para que minha conduta seja condizente com o tamanho do bem que possuo e que, agora, revela-se muito mais precioso.
Você me fez conhecer um sentimento que eu nem suspeitava existir. É ele que me ensina a viver com sabedoria e amenizar a saudade. O ganho é tão grande, que ele mantém sua presença em todos os momentos. Assim, vou caminhando até onde você está, cheia de lições que pretendo lhe entregar, as quais você me ajudou a colher.

Um beijo com afeto da mamãe,
Flavia Camargo.
21/08/16"

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